A igualdade não casa com toda a gente

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Foi a 26 de Junho que, um pouco por todo o mundo, se ouviu falar da decisão que o Supremo Tribunal dos EUA tomou face ao casamento entre pessoas do mesmo sexo: os vários Estados não têm o direito de impedir duas pessoas do mesmo sexo de se casarem, nem têm o direito de não reconhecer casamentos efectuados noutros Estados.

A celebração foi grande, especialmente com o empurrão de visibilidade que o Facebook deu: uma ferramenta que, automaticamente, coloca uma bandeira do Orgulho LGBT por cima da foto de perfil da pessoa.

Que não haja dúvidas: celebrar é bom! Visibilidade para questões dos direitos humanos – e dos direitos das pessoas LGBTQIA+ em particular – é excelente! Sou da firme opinião que todas as pessoas têm que ser responsabilizadas – embora não da mesma maneira nem com o mesmo papel – pelas questões dos direitos fundamentais da nossa sociedade. O facto de alguém partilhar uma foto com uma bandeira tão simbólica pode parecer, para uns, um acto rápido, inconsequente, pueril. Só que também pode ser, para outras pessoas, a possibilidade de exprimir algo que já há muito sentiam, mas que tinham (justificado) receio de declarar abertamente.

Quem está de fora nunca sabe. E, numa sociedade heterossexista, homofóbica, os armários são grandes e pesados, e as formas de abrir fendas neles, múltiplas e tão variadas quanto variadas são as pessoas que lá estão presas ou refugiadas.

Ainda assim, sinto que há uma ressalva a fazer: não há cidadania sem memória. A bandeira, o movimento LGBTQIA+, o conceito de “Orgulho” – nenhuma destas coisas surgiu do vazio, nem foi criada ontem à hora de almoço. São ideias com história, e são histórias com muitas ideias lá dentro – uma cidadania responsável é uma cidadania que conhece (sempre com limitações, claro) essas ideias, que conhece essas histórias, que sabe os significados daquelas letras todas, mas também da conquista que foi as próprias letras estarem na sigla (quando estão!).

A História não é linear. E se estamos melhores hoje em dia, de outros lados surgem novos riscos, que antes não se colocavam sequer. A cidadania crítica implica reconhecer as vantagens e, ao mesmo tempo, as desvantagens destes pequenos detalhes.

O Facebook não era obrigado a criar aquela ferramenta para facilitar o espalhar de bandeiras. E fê-lo; gerou uma onda de solidariedade, na sequência da decisão do Supremo Tribunal. Só que o Facebook não deixa de ser uma empresa, mobilizada pelo lucro e pela rentabilização, e com objectivos próprios. Ao mesmo tempo que o Facebook fez isto, também manteve a sua “política do nome real”, que tem sistematicamente servido para alienar e discriminar contra pessoas trans*, travestis, Nativos Norte-Americanos, e muitos outros.

O casamento é uma enorme conquista simbólica, e torna casamentos entre duas pessoas do mesmo sexo possíveis – mas o facto de algo ser legal e o facto de algo ser possível na prática são duas coisas bem diferentes. Pessoas com diversidade funcional, pessoas que precisam de fundos do equivalente à Segurança Social, e muitas outras situações de fragilidade social que são agravadas ainda mais por alguém ser LGBTQIA+ podem, tecnicamente, casar-se agora com alguém do mesmo sexo… desde que não se importem de perder parte ou a totalidade dos apoios sociais que garantem que não morrem de fome (exemplos aqui ).

Para estas pessoas – muitas! – casar não é uma vitória, não é um direito. É mais uma forma de as excluir e de as fazer sentir diferentes, inferiores, de as empurrar para o armário. O movimento LGBTQIA+ tal como o conhecemos agora começou com pessoas trans*, boa parte delas Afro-Americanas e de outras ascendências não-europeias, a terem que lutar contra a repressão e violência policial constantes. Contra, enfim, o Estado. Se o Estado concedeu agora este direito, podemos festejar.

Mas não é boa cidadania festejar sem recordar quem ainda está de fora. Sem pensar naquelas pessoas a quem o casamento iria prejudicar ainda mais – porque o problema de base não está na impossibilidade de casar, ou de adoptar.

O problema de base está em deixarmos que seja o Estado a gerir os nossos afectos, a distribuir (e a negar!) direitos de forma arbitrária, discriminatória, historicamente opressiva. O casamento não vai ajudar as vidas das pessoas trans*. O casamento não vai ajudar a combater a discriminação racial dos EUA. O casamento ali não vai subitamente destrancar o casamento acolá.

Nós podemos partilhar bandeiras. Mas isso é – para muita gente – apenas o começo de um processo de aprendizagem e sensibilização que não se pode ficar pelas bandeiras (ou pelas estratégias de marketing do Facebook, que vai dar ao mesmo, neste caso). Porque, como disse Audre Lorde , “As ferramentas do mestre nunca desmantelarão a sua casa”.

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